O crescimento do mercado de carros elétricos no Brasil vai depender do tamanho da ambição da sociedade em abraçar uma transformação da indústria automotiva que é inexorável. Essa é a visão de uma das montadoras que estão liderando esse movimento no mundo, a General Motors, segundo disse Marina Willisch, vice-presidente de Relações Governamentais e de Comunicação da GM para a América do Sul, em entrevista à EXAME Invest.
“Temos todos os minerais necessários ou no Brasil ou no nosso entorno. Temos mão-de-obra extremamente qualificada, exportamos engenheiros. A academia é muito forte. Temos uma capacidade de produção enorme. Precisa de investimentos, como em qualquer lugar do mundo. Os fornecedores no país são globais. E temos consumidores exigentes a partir do momento em que puderem experimentar carros elétricos”, disse Willisch.
“Temos condições de nos tornarmos um pólo de desenvolvimento, produção e exportação de veículo elétrico e das tecnologias. Não ficarmos só no CKD (montagem de carros)”, afirmou a executiva.
É uma visão mais assertiva pró-eletrificação que destoa da defendida por parte da indústria automotiva e de alguns especialistas, que argumentam que o país deve tirar vantagem do fato de ser um dos maiores produtores de etanol do mundo para fazer uma transição mais gradual ou até operar em um modelo de coexistência com os elétricos.
Willisch, advogada por formação, trabalha no setor automotivo há duas décadas. Depois de dez anos na Mercedes Benz do Brasil, passou para a GM em 2013 como diretora tributária. Ocupa o cargo atual desde 2019 e lidera uma das áreas prioritárias da montadora americana, a de políticas relacionadas à frente ESG (ambiental, social e de governança, na sigla em inglês).
Veja abaixo trechos da entrevista com Marina Willisch:
Como tem sido a volta ao trabalho presencial na GM no Brasil?
Quando a pandemia começou, percebemos logo a seriedade pois recebemos muita informação de outras GMs no mundo. Desde 23 de março de 2020, nós ficamos remotos. E ficamos praticamente 100% remotos até o ano passado, com exceção da área de manufatura, claro. Eu mesmo só vinha quando era absolutamente necessário.
Agora, com o arrefecimento da pandemia, a vacinação em massa e as taxas (de casos e internações) caindo, seguimos o que a [CEO global] Mary Barra e o comitê global criaram em 2021, que se chama Work Appropriately: não há um dia definido em que você tem que trabalhar presencialmente. Eu não falo para o meu time ‘vocês têm que estar aqui segunda, quarta e sexta ou terça e quinta’. Definimos o que é melhor para cada um e o que é melhor para a área.
O que eu pedi para o meu time é para que me avisem o dia em que não vão vir para que eu não fique aqui trabalhando sozinha, porque daí eu fico em casa. Mas, por exemplo, acabamos de fazer um bootcamp de inovação com três challenges [desafios] e foi tudo online até a final com a entrega dos protótipos.
Somos uma organização regional. Todas as nossas atividades, mesmo na minha área de relações governamentais e comunicação, têm participantes de toda a América do Sul. Antigamente, ficávamos em uma mesa só ouvindo e a pessoa no telefone participava pouco. Hoje nas reuniões, abrimos o computador, ligamos a câmera e aí todo mundo participa de forma mais igualitária e tem a chance de praticamente estar presente, mesmo a pessoa um pouco mais tímida. E isso é mais inclusivo: você liga a câmera de uma reunião virtual e está todo mundo com o mesmo destaque.
É um modelo flexível que destoa do estereótipo da indústria automotiva…
De uma indústria tradicional, conservadora, velha (risos)… estamos mudando essa imagem. Quase todas as nossas estratégias, desde o desenvolvimento do carro até as estratégias de negócio, a de eletrificação, são globais. Isso significa que, querendo ou não, sempre vai ter alguém que não está na sala. A pandemia permitiu que tivéssemos um excelente aprendizado de trabalhar isso muito bem, tanto a parte técnica como também a interação e o relacionamento. O que antes eram soft skills agora são must skills. É a capacidade de se relacionar 360º em todas as dimensões.
E isso faz parte também da sua missão na GM. Como tem sido liderar esse processo?
A nossa indústria passa pela sua maior transformação dos últimos cem anos. Não só na questão da inclusão, da disrupção dos meios de comunicação, mas também a maneira como o cliente enxerga a mobilidade. E como o mundo vê o meio ambiente em que estamos inseridos. Temos que ser mais sustentáveis. O ESG engloba essas dimensões, do lado ambiental, social, das pessoas, e de como gerenciar tudo isso. A GM quer ser uma empresa mais inclusiva, ao mesmo tempo em anunciou que a nossa visão é de zero acidente, zero emissão e zero congestionamento, para tornar o convívio social mais prazeroso, para economizar o tempo das pessoas e para salvar as suas vidas.
Um dos pilares dessa estratégia é a eletrificação, para que o futuro seja mais sustentável. E a inclusão faz parte dessa jornada democrática que vai demorar para ser transversal para todo mundo, para que todos um dia possam gozar dos benefícios de um veículo elétrico, para que o ar fique melhor para todos. É uma visão de fato holística.
Isso também significa ser uma empresa mais inclusiva para funcionários, mulheres, negros, LGBT, PCD (pessoas com deficiência). Temos reconhecido que temos que mudar. Como fazemos isso? O primeiro passo é contratar mais pessoas que aumentem a diversidade para que possamos entender melhor o que temos que fazer internamente. É parte do processo. Os nossos clientes também são diversos. O que eles estão pedindo? Temos que ouvir o que eles querem.
Por que a GM decidiu acelerar os planos da eletrificação dos modelos?
A GM trata os efluentes de suas plantas industriais desde 1940. Temos zero aterro. As plantas de Gravataí, São Caetano do Sul e Joinville têm certificações ecológicas importantes, temos geração fotovoltaica etc. Mas vimos que não era suficiente. Não adianta fazer tudo isso e o seu produto ser poluente, com emissão de carbono. Foi quando se definiu a política ‘zero, zero, zero’. Todas as nossas decisões globais vão na direção de 100% de eletrificação. A GM já anunciou que pretende atingir a neutralidade de carbono globalmente até 2040, não lançar mais veículos movidos a combustão até 2035 e investir US$ 35 bilhões para lançar 30 modelos elétricos dos mais variados perfis até 2025.
E, claro, será preciso que toda a sociedade, não só a empresa e o setor, se organize e esteja tocando na mesma orquestra para que essa transformação aconteça. Tem toda a parte de conscientização e de conhecimento do produto: um carro que você carrega em casa, que não faz barulho, que tem autonomia de até 500 a 600 quilômetros…
Mas isso passa também pela redução do preço do carro elétrico…
A GM está investindo para reduzir o custo da bateria e trabalhamos com startups e parceiros para melhorar a infraestrutura. E temos a visão de que são necessárias políticas públicas de apoio, que União, Estados e municípios também convirjam para essa visão de sustentabilidade do mundo neutro em carbono. Quando isso vai acontecer? Não sei. Mas o mundo está mandando recados bem claros de que é preciso mudar.
E qual o papel da GM no Brasil para fomentar esse processo?
Temos conversado muito sobre isso na GM. Temos todos os minerais necessários ou no Brasil ou no nosso entorno. Temos mão-de-obra extremamente qualificada, exportamos engenheiros. A academia é muito forte. Temos uma capacidade de produção enorme. Precisa de investimentos, como em qualquer lugar do mundo. Fornecedores que são globais. E temos consumidores exigentes a partir do momento em que puderem experimentar carros elétricos.
Com todo esse conjunto, potencial e vocação, temos condições de nos tornarmos um pólo de desenvolvimento, produção e exportação de veículo elétrico e das tecnologias. Não ficarmos só no CKD [montagem de carros]. Trazer essa realidade para o Brasil seria excelente não só do ponto de vista ambiental e de sustentabilidade como também social. Imagine a quantidade de emprego qualificado, de pesquisa, de desenvolvimento. A eletrificação é inexorável e o trem já partiu. A GM está na locomotiva. O Brasil quer entrar ou vai ficar com o carro a combustão?
Do ponto de vista de comércio internacional, o Brasil não só não vai exportar – na América do Sul são mais de 400 milhões de pessoas – mas terá que receber modelos desenvolvidos e pensados para outros países.
E o quanto dá para avançar se não houver essa transformação em conjunto do país para a eletrificação?
Todas as montadoras do mundo anunciaram que vão para o carro elétrico. Claro que há timing diferente para a transição. Ninguém vai apertar um botão e ficar 100% elétrico da noite para o dia. Nós também temos uma transição até 2035. Até lá, vamos trabalhar o máximo que pudermos tanto na adoção de políticas públicas como no desenvolvimento de parceiros fornecedores e na conscientização e no conhecimento dos consumidores. Vamos trazer mais importados e oferecer a eles a oportunidade de conhecer e de testar os modelos, trilhando essa jornada para a eletrificação.
E trabalhando nos veículos a combustão para que fiquem cada vez mais eficientes até 2035. Dentro da indústria, todos têm mais ou menos a mesma visão e a própria Anfavea afirmou em documento que o futuro é elétrico. A diferença é o tempo para chegar a esse estágio: há montadoras que começaram depois, enquanto outras como a GM começaram antes. O mesmo acontece em relação aos estágios de diferentes mercados: há países europeus mais adiantados do que outros. Estados Unidos e China estão avançados; a China está puxando muito esse mercado.
Quais são as políticas públicas necessárias na avaliação da GM?
São políticas públicas que atendem ao interesse do consumidor. A indústria produz o que o consumidor quer. Há inúmeras políticas de fomento. Na Colômbia e em alguns estados no Brasil, por exemplo, veículos elétricos são liberados do rodízio. Pode haver benefício tributário para o consumidor. Ou vantagens em estacionamentos. Mas isso vai depender também da necessidade de mobilidade do consumidor. No Pantanal, por exemplo, estacionamento ou rodízio não são importantes, mas, sim, uma rede de infraestrutura em que ele possa carregar o carro.
Mas o quanto o consumidor brasileiro está já disposto e deseja comprar um carro elétrico?
A demanda hoje é maior do que a oferta, até considerando que os carros elétricos são importados. Primeiro, tem que haver conhecimento. E isso inclui ter a experiência do carro elétrico. Ainda há muita confusão do consumidor entre elétricos e híbridos. O carro elétrico não é mais algo do futuro, faz parte da realidade cada vez mais. E isso começa a mudar na medida em que há mais opções para o consumidor: vai haver modelos premium e outros aspiracionais. É o que acontece com veículos de carga: vans, camionetes, caminhões elétricos. As empresas demandam mais.
Como será esse mercado em cinco anos?
Cinco anos atrás, ninguém falava em carro elétrico. Acredito que vamos nos surpreender. Hoje as análises de mercado são feitas olhando o retrovisor. A GM anunciou no ano passado que não será apenas uma empresa de veículos, mas uma plataforma de inovação, de software e de hardware. Lançamos primeiro o wi-fi embarcado no carro: as pessoas diziam que não iria pegar e um ano depois outras empresas também fizeram. Com o carro elétrico vai ser a mesma coisa. A partir do momento em que o produto existe, o crescimento se dá em PG [progressão geométrica]. Vamos lançar 30 modelos elétricos no mundo até 2025: nem todos estarão aqui, mas vários estarão no mercado brasileiro.
Quais são as iniciativas de inovação da GM que a senhora destacaria?
No momento em que a GM se autodefine também como uma plataforma de software e de hardware, ela se dá a oportunidade de olhar e buscar novos negócios. Podemos fazer tudo que envolve a experiência da mobilidade. Estamos falando de segurança e proteção, por exemplo, com o OnStar. Você pode desde ligar o carro remotamente até contar com um monitoramento que avisa se o carro saiu da rota ou estacionou em um lugar perigoso.
Uma vez que parei o carro no acostamento para pegar algo no porta-malas e me ligaram na hora para saber se algo havia acontecido. E alertaram que era um local perigoso. Lançamos agora a Ultifi, uma plataforma que permite que o carro ‘converse’ com o ecossistema ao seu redor, multiplicando a conectividade e a oferta de novos serviços. É uma porta que se abriu com o 5G e a Internet das Coisas e tudo que pode ser oferecido ao consumidor. É como a indústria de games: o consumidor poderá comprar atualizações conforme as suas necessidades e vontades.
Temos a BrightDrop, que é uma linha de negócios nova de carros para entrega – são vans elétricas, no futuro também autônomas – com uma espécie de container que já se comunica diretamente com o seu celular ou o seu iD. Quando chega ao destino, ele se move sozinho para levar a encomenda até a sua casa. É um produto que já existe nos Estados Unidos e que tem clientes como FedEx, UPS e Walmart. Ele é um sucesso no mercado.
E há o carro autônomo. Tem o vídeo da Mary Barra que viralizou recentemente, dentro do carro autônomo em San Francisco…
A GM tem participação majoritária na Cruise, que desenvolve esses modelos. Não vejo a hora de chegar ao Brasil. É seguro, está totalmente conectado e vai funcionar no modelo de assinatura. Quero ir até algum lugar. Chamo o carro autônomo, ele chega à minha casa e me leva ao destino. Fico pensando em mães com filhos pequenos, pessoas idosas, com limitação de mobilidade… são negócios nessa frente de inovação que vão além do carro em si.
E toda essa inovação vai chegar ao Brasil? Quanto tempo demora?
Acreditamos que vai chegar, mas o timing não me arrisco a dizer. Vai depender das condições do cenário que comentei, das políticas públicas de fomento, do conhecimento do consumidor e dos custos. (Portal Exame/Marcelo Sakate)